domingo, 29 de setembro de 2013

A fragrância de Alther

Capítulo I

Eu mexia no cadeirão sobre a fogueira. Coloquei almíscar, jasmim, casca de bergamota, pra ficar refrescante... Um pouco de álcool de frutas... um pouco de fixador... Pensei em algo bem triste e joguei na poção uma lágrima sincera... Também lembrei de alguns homens que me fizeram rir e joguei esses sorrisos lá... Mexi, mexi.. Ficou meio forte... adicionei água da última chuva. Aquela chuva me trazia boas lembranças, pois eu ainda podia sentir os pingos caindo no meu rosto... A fragrância foi ficando melhor, mas ainda não inspirava o que eu queria...

Estava tão entertida fazendo minha fragrância que nem vi que estava sendo observada... me assustei!

- Você precisa disso pra atingir seu objetivo! (Disse o estranho, envolto numa grande túnica preta. Capa preta também.)
- Quem é você? Como chegou até aqui?
Antes que ele respondesse, minha gata Pandora apareceu e ficou se esfregando na perna dele e miando... Bom sinal?

- Você me chamou!
- É mesmo? Como?
- Você está criando a fragrância "Amulhetum" e precisa de ingredientes além dos que já tem. Tome, aceite e veja como fica!

Eu fiquei meio acabrunhada um tempo. Uma coisa é acreditarmos num monte de coisas, outra é surgir uma pessoa querendo facilitar as coisas pra você. Nunca me acostumei a isso.

- Pode me dizer seu nome pelo menos?
- Importa?
- Claro que importa! Seu nome, de onde veio, o que quer aqui...

Ele deu três passos, abriu o saquinho que continha uma espécie de vidrinho azul... Abriu e jogou o conteúdo igualmente azul no caldeirão.
Eu fiquei meio petrificada... Mas imediatamente o caldeirão emitiu uma luz azul clara linda... Fiquei olhando aquele fenômeno... Peguei a concha... Os vários litros que eu cozinhava de repente viraram pouco menos que uma concha. O estranho me ofereceu 4 vidrinhos muito decorados e com o funil eu coloquei a fragrância neles.

Ele pegou um dos frascos e disse:

- Posso ficar com esse de recordação?
- Pode...claro...Você trouxe a essência que eu tanta precisava. Mas eu acho muito complicado que surja do nada assim... Eu não deveria confiar em você!
- E por que não, moça?
- Os homens não são confiáveis!!!!
- As mulheres são?

Antes que eu respondesse ele borrifou o perfume em mim. Não sei descrever ao certo o que houve, mas eu o enxergava melhor agora. Quando ele chegou, achei-o meio velho e encarquilhado. Depois do perfume, achei que ele era interessante e até mesmo jovem! Que coisa estranha. E os olhos dele faiscavam... E me senti um passarinho querendo se aconchegar no ninho. O estranho veio por trás de mim e me abraçou. Eu fiquei parada. Deu vontade de correr, mas eu estava paralisada. Mas também deu vontade de ficar... Ele sussurrou no meu ouvido e até sua voz era melodiosa agora...

- Confia em mim, moça?
- Confio...
- O que queres agora?

Eu reuni todas forças possíveis, porque estava prestes a dizer bobagens.

- Quero que me esclareça sobre como veio parar aqui, seus verdadeiros objetivos e porque veio me ajudar.

Ele se afastou de mim, me encarou de frente. Riscou no chão uma linha e deu três passos para trás.

- Eu estou a três passos de você. Venha até mim se quiser obter respostas.
- Por que tanto mistério? Porque você não me diz logo que ia passando e foi atraído pelo cheiro da poção? Por que não diz logo que jogou  seu melhor perfume no caldeirão e que já tinha os frascos porque é um mascate ou algo parecido... Porque não fala de uma vez seu nome?

Ele levou a mão a boca e fez um sinal de silêncio. Me olhou profundamente. Deu um grande suspiro e disse:
- Por que temer o desconhecido? Por que temer os homens? Por que tantos por quês? São três passos... Apenas isso...

Resoluta dei os três passos sem vacilar. Ele abriu um grande sorriso e disse:

- Eu sabia que você viria. Sua iniciação começou. Arrume suas coisas. Você vai agora para Alther!
- Você é o enviado de Alther? Eu nem esperava mais resposta. Achei que não tinha realizado a invocação correta...
- Você foi aceita. Parabéns! Para sua segurança e para a de muitos de nossos aspirantes a iniciados, você precisará usar essa fragrância todos os dias!
- Por que? E se eu esquecer de usar o que acontece?
- Não sei se você sabe, Alther conta atualmente  com 72 homens e nenhuma mulher...
- Não há mulheres em Alther? Por que?
- Há anos as últimas iniciadas foram realizar suas vivencias pelo mundo e não enviaram novas candidatas. Há anos o Conselho não aprova também nenhuma invocação.
- Há anos ninguém lá vê uma mulher? Não sei se meu lugar é em Alther...
- Sua fragrância inspira amizade, moça. Não haverá nenhum perigo. Não deixe de fazer o que é necessário devido aos seus temores injustificados.
- Não se trata de medo. Eu não tenho medo e muito menos temo os homens. Você me ajuda arrumar minhas coisas?
- Ajudo, mas leve apenas o necessário para a viagem. Lá você vai receber tudo o que precisa. Há muitas regras a serem seguidas, horários a serem cumpridas...
- Já entendi... DISCIPLINA!  Odeio disciplina!
- Mas precisa ter...
- Posso levar Pandora?
- Por que você tem um animal?
- Gosto dela... faz companhia... uma série de coisas.
- Você precisa deixar muita coisa para trás. Suas roupas, sua casa, sua família, seus amigos e sua gata!
Mas você terá tudo que precisa lá...
- Começo a achar que Alther não é pra mim...
- Na verdade, começas a achar que não vives sem suas coisas. Despegue-se!
- Assim, só porque você está dizendo?
- Você deu três passos em direção a mim. Pode voltar se quiser... Sua aceitação não implica em que tenha que ir agora. Pode ser daqui a dias, semanas anos ou milênios...
- Você está lá há muito tempo?
- Sim... mais do que você pode imaginar...
- Eu vou! E vou logo com você. Adiar as escolhas não é bom. O que digo à minha mãe?
- A verdade... sempre!
- Não posso dizer que vou a um mosteiro que só tem homens! E se ela vir você acho que vai ficar temerosa... receosa...
- Sua mãe me conhece. Ela aprova sua ida e até gostaria de ir com você, mas não foi aceita.
- Sério? Vocês não são um pouco "fechados" demais? Minha mãe é boa também. Tem grandes dons.
- Sabemos disso. Mas muitos tem dons... Não é suficiente...
- Minha mãe te conhece de onde?
- É uma longa história... Vá buscar suas coisas e escreva uma carta à sua mãe. Não se
despeça de mais ninguém.
- E minha gata?
- Os gatos sabem sobreviver em condições adversas...
- Você é meio cruel, não?
- Suas impressões são as suas impressões... Nada posso fazer... Vamos?
- E vamos como?
- Primeiro faça o que disse.

Entrei em casa. Peguei algumas roupas, alguns objetos, fiz uma carta para minha mãe e citei alguns amigos. Botei um pouco mais de comida para Pandora. Peguei alguns mantimentos. Quando vi, estava com três volumes!

- Estou pronta!
- Não, não está. Um volume apenas! Pra que tantas coisas desnecessárias?
- Como assim "desnecessárias"?
- Você tem algum problema com autoridade, moça? Com regras e obediência?
- Se não tivesse não iria pra Alther me educar... Domar meus instintos e aumentar meu conhecimento. Mas você é muito mandão! Quem é você lá no mosteiro? O que faz?
- Limpo as pedras.. catalogo...burilo...
- Ah, você e um artesão? Um ouvires?
- Lido com coisas preciosas.
- E lá em Alther vocês usam jóias?
- Não exatamente... Você é muito curiosa. Seus primeiros dias serão fazendo um voto de silêncio...
- Aí já é demais! Não consigo ficar sem falar!
- Consegue sim. Tudo é possível quando desejamos. (Tirou algo do bolso, algo como um relógio prateado, não vi direito.) Pensando bem, deixe tudo. Vamos!? Perdemos muito tempo.

Me pegou pela mão do jeito que eu estava. Apagou a fogueira do caldeirão. Pegou os  frascos de perfume numa mesa próxima. Borrifou em mim novamente. Subiu no cavalo. Me ajudou a subir na garupa e saímos galopando. Chegamos na Cachoeira.

- Entre na água!
- Não tenho roupa adequada. Você não me deixou trazer nada, lembra?
- Tire a roupa e nade até aquele paredão.
- Eu não vou tirar minha roupa! Que absurdo! Vou me queixar aos seus superiores, viu?
- Não quero ver seu corpo, moça! Para se chegar a Alther precisamos atravessar a cachoeira. Não podemos levar nossas roupas...
- Então porque me deixou arrumar três bolsas de roupas?
- Íamos tomar outro caminho. Tive a informação que por aqui seria possível. É melhor e mais rápido. Não tinha certeza também que o portal estaria aberto. Vejo que está... Tire a roupa. Ficarei de costas. Nade até o paredão...
- Já sei, já sei...Não olhe...

Eu começava a achar que tinha me metido numa tremenda confusão e que a cada minuto que passava ficava pior. Eu não desconfiava muito do velho, mas desconfiava um pouco. Achava que poderia derrubá-lo facilmente, caso ele tivesse a ousadia de tentar algo contra mim. Por mais que eu adore tomar banho de cachoeira, tirar a roupa ali era demais. E esse tal portal? Como seria? Eu já havia lido sobre Alther e ouvi muitas histórias... Mas uma coisa é que o vemos e ouvimos e outra é a criatura ali te ordenando o tempo todo! Tirei a roupa rápido e mergulhei na água. Nadei até o paredão. Fiquei por trás dá água que caía forte na queda d´água. Estava gelada e eu comecei a tremer. O velho tirou a roupa, mergulhou e lógico que fiquei olhando para ele. Ele nadava muito rápido. Chegou ao paredão e fiquei tentando olhar nos olhos dele. Observei que ele não era velho. Deveria ter uns quarenta nos no máximo. E não era curvo como antes. Ele me pegou pela mão e disse:

- Está com frio?
- Sim, muito.

Ele não estava totalmente nu. Tinha uma espécie de bolsa. Dela tirou um dos frascos de perfume e borrifou em mim. Imediatamente me senti aquecida e vestida. Não me sentia mais envergonhada de estar nua.

- E agora?
- Sinto bem. Perdi a vergonha de estar nua também.
- Você não está nua, veja!

Me olhei na água e realmente estava vestida. Uma roupa linha e deslumbrante.

- O que havia no perfume que você despejou no meu? Alguma substância que causa alucinações? Não apenas estou me vendo vestida, mas estou me sentindo vestida.
- Aquela essência pode tudo... Mas não é alucinógena. Tome (e me deu o frasco), borrife em mim.

Pensei porque ele mesmo não se borrifava, mas não era nada demais obedecer e borrifei o perfume nele. Aí é que a ilusão ficou maior. Ele ficou vestido também. Bom, eu estava indo para Alther, não podia ficar descrente das sensações de um perfume que fiz com a intenção de atrair o amor.

Ele me conduziu pra debaixo da cachoeira. Ao atravessar uma cortina de água brilhante e azulada, chegamos instantaneamente a Alther. Lindo lugar. Andamos alguns metros saindo de uma cachoeira. A primeira coisa que vi foi um grupo de jovens plantando. ELES ESTAVAM NUS! Olhei pra mim e me sentia nua novamente. Cobri o corpo com as mãos. Ele...como é mesmo o nome dele?

- Meu nome é Aquos...
- Eu estava nua esse tempo todo?
- Como se sentia?
- Vestida!
- E o que interessa pra você é sentir ou estar?
- Eu gostaria de estar e de me sentir vestida também! Mesmo que fosse uma comunidade de mulheres.
- Você precisa aprender a ficar bem com seu próprio corpo. Nascemos nus... Como me vê agora?
- Você está nu...
- Conseguirá se acostumar com isso...
- Você me parece mais jovem agora... quantos anos tem?
- 37 milênios...
- Me parecem no máximo quarenta anos...
- Dá no mesmo... Chegamos...

Fiquei encantada com o que me pareceu m templo de pedra... Magnífico, imponente e belo. Muito belo.

- Que lugar lindo!  É o templo de vocês?
- Não temos templos. Essa é a minha casa. E sua enquanto estiver aqui.
- Sua casa? Como assim? Há outras "casas" como essa? Como podem viver nus e morar em construções como essas?
- Nós não vivemos nus. Você nos enxerga nus, é diferente. E essa sua preocupação com seu corpo lhe deixa desnuda. Olhe direito, eu não estou nu.

Olhei, olhei...

- Você está completamente nu...Fora essa sua bolsa aí... Mas já começo a me acostumar.
- Você é mesmo teimosa. Vamos, entre.

O interior da casa era no mínimo contrastante com o exterior. As coisas tinham linhas retas, pareciam de prata e não havia uma lareira. Nunca tinha nem sonhado com algo igual.

- Não faz frio aqui. E nem calor. Controlamos a temperatura.
- Com seus poderes mágicos?
- Não, com isso aqui. Chama-se "controle remoto".

Ele me mostrou um pequeno dispositivo com vários botões...

- Preciso que antes de mais nada, assista a uma coisa.
- Um ritual?
- Não. Preciso que assista a uma história...

Nisso entrou um outro homem, vestido, semblante um tanto grave.

- Seja muto bem-vinda minha querida!

E beijou minhas mãos. Gostei imediatamente dele. Me dava a impressão de já tê-lo conhecido.

- Obrigado senhor! Eu sou...
- Sei quem você é. Eu sou Menthos... Venha, lhe mostrarei seus aposentos... Lhe darei algumas roupas que ficaram das nossas antigas iniciadas...

Fiquei vermelha só de pensar se ele me via nua.

- Eu estou nua?

Menthos olhou-me longamente. Com aquele ar paternal me disse com sua voz terna e suave:

- Você já esteve doente, não é?
- Sim, algumas vezes.
- Lembra-se do curandeiro que examinou seu corpo da última vez?
- Sim, ele olhou meu corpo todo, pois ninguém sabia o que eu tinha.
- Pois bem, esse curandeiro procurava em seu corpo vestígios que indicassem a doença. Ele não olhava você como uma mulher, mas como uma pessoa doente que pecisava de ajuda, percebe?
- Compreendo...
- Aceite que ninguém aqui está olhando para você como mulher... Mas como uma irmã,uma companheira de jornada... Siga-me...

Aquos me olhou e me senti terrivelmente nua. Eu olhei pros dois e vi que estavam vestidos.  Depois do primeiro dia eu me sentia vestida para todos, menos para Aquos e isso foi uma das coisas que mais me incomodou de início.

Segui Menthos. Meu quarto tinha vista para o jardim e o lago. Era tudo muito diferente e cheio de espelhos. E todos eles revelaram o que eu mais temia. Eu estava nua...


3 comentários:

Adaljiza Cuan disse...

Eu adorei..mas acho que tem mais da historia,,quero ler,parabéns a quem criou

Márcia Sales disse...

Deliciosa essa ficção, mexe com elementos que adoro. Quanto à questão dela estar nua de fato oi não, passa pela interpretação de cada um...acredito q em alguns momentos houve a nudez de fato e em outros houve a sensação de vulnerabilidade, outra forma de se estar nu.

Amazona Virtual disse...

Adalgiza, realmente, essa é só uma parte...São sete histórias que se intercruzam... Há pelos menos mais umas cinco nesse blog...

Marcia, o que seria de nós desnudos? Olhe quanta coisa não exstiria...